Há dois problemas críticos em situações de incêndio: inalação de substâncias tóxicas e queimaduras internas
Fumaça inalada é perigosa não apenas por carregar toxinas, como também por sua alta temperatura
Sobreviventes de tragédias como o incêndio da boate Kiss, em Santa
Maria, no Rio Grande do Sul, em alguns casos têm de conviver com
sequelas físicas e psicológicas para o resto de suas vidas.
A BBC Brasil conversou com o pneumologista José Eduardo Afonso Júnior,
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo,
para saber como a inalação de fumaça em incêndios afeta o organismo.
Afonso explicou que há dois problemas críticos em situações de
incêndio: a inalação de substâncias tóxicas e as queimaduras internas
provocadas pela inalação de fumaça quente.
— O monóxido de carbono que se forma a partir da queima de materiais
entra pelo pulmão e cai na corrente sanguínea, ocupando espaço nos
glóbulos vermelhos onde deveria estar o oxigênio.
— Quando os glóbulos vermelhos ficam tomados por monóxido de carbono,
não conseguem transportar oxigênio, o que provoca a morte.
Sobreviventes da tragédia do RS podem desenvolver pneumonite química
O médico citou como exemplo casos onde pessoas morrem por inalar monóxido de carbono em uma garagem fechada.
Tóxica e Quente
Mas, no caso de incêndios, a fumaça inalada é perigosa não apenas por carregar toxinas, como também por sua alta temperatura.
'A fumaça gerada pela combustão de produtos que espumam, como plástico,
já é altamente tóxica. Mas, além disso, a alta temperatura dessa fumaça
causa lesões na traqueia e nos brônquios, chegando até os alvéolos'
(estruturas localizadas dentro do pulmão onde ocorre a troca de gases -
oxigênio e gás carbônico).
O médico explicou que, quando a fumaça muito quente é inalada, os brônquios da pessoa se fecham.
— É como uma crise aguda de bronquite que fecha os brônquios e não
deixa o ar passar. Você sofre pela falta de ar e pode sentir dor porque a
traqueia tem nervos que dão sensação de dor.
— A combinação da inalação do monóxido de carbono com a lesão térmica leva ao óbito em poucos minutos.
Boate Kiss
Comentando sobre a tragédia na casa noturna gaúcha, Afonso disse supor que a maioria das vítimas tenha morrido por asfixia.
— A impressão que tenho, com base apenas nas imagens que vi, é de que a
maior parte morreu por causa da fumaça e do monóxido de carbono, não
pela queimadura em si.
Segundo Afonso, quando há queimaduras internas por fumaça quente, a face e os cabelos da vítima também ficam queimados.
— Pelo que ouvi, os corpos não estavam carbonizados, Então, suponho que a causa da morte tenha sido asfixia.
Se há muita fumaça, e dependendo da concentração de toxinas, a pessoa perde a consciência mais rápido, ele explicou.
Tragédia em Santa Maria faz RS mobilizar população para repor estoque de sangue
Ele enfatiza, no entanto, que seus comentários são hipotéticos, pois
ele não possui informações específicas sobre o caso da boate Kiss.
Sequelas
Enquanto alguns, nesse momento, lutam para enfrentar a perda de entes
queridos, outros velam, ansiosos, pelas dezenas de jovens internados nos
hospitais da região.
Em sua entrevista à BBC Brasil, o pneumologista José Eduardo Afonso Jr.
disse que muitos pacientes que sobrevivem a tragédias como essa se
recuperam completamente.
É o caso, por exemplo, de pacientes que sofreram intoxicação por
monóxido de carbono e perderam a consciência mas foram resgatados a
tempo.
— Ficam no suporte de oxigênio e sob monitoramento, mas o monóxido de carbono vai sendo liberado e há mínimas sequelas.
— Apenas em casos em que a oxigenação ficou baixa durante muito tempo pode haver sequelas neurológicas.
Segundo Afonso, a lesão neurológica provocada pela ausência prolongada
de oxigênio no cérebro é conhecida como encefalopatia anóxica.
'Quando isso ocorre, o paciente não acorda, fica em coma'.
'Mas se a oxigenação foi revertida rapidamente, o paciente tem condições de ficar bem'.
Mais problemática, ele explicou, é a lesão térmica e química.
— A longo prazo, a cicatrização dessas lesões térmicas pode levar a
doenças crônicas, como acontece com fumantes', explicou. 'Em casos mais
sérios, pode haver limitação das atividades normais do paciente.
Isso ocorre porque, segundo Afonso, a cicatrização não gera um tecido
idêntico ao anterior. O tecido cicatrizado muitas vezes perde sua
propriedade básica, de trocar oxigênio com a corrente sanguínea de
maneira eficiente.
— Dependendo do grau de lesão, há sequelas leves, onde a pessoa vive
bem. Se a lesão for mais grave, a pessoa pode precisar de suplementos de
oxigênio para o resto da vida, porque o seu pulmão não dá conta.
Outra consequência grave de lesões térmicas é que as queimaduras nas
vias respiratórias tiram a proteção natural dos tecidos e deixam a
pessoa mais vulnerável a infecções.
— A destruição da camada interna dos brônquios e da traqueia favorece
infecções e muitos morrem mais tarde, vítimas dessas infecções.
— Aliás, infecções são uma causa comum de morte entre queimados, tanto em queimaduras de pele como de pulmão.
Uma outra sequela comum entre sobreviventes de incêndios é o acúmulo,
dentro do pulmão, de partículas sólidas dos produtos em combustão,
carregadas pela fumaça.
Estoques de pele de países vizinhos são acionados para atender Santa Maria
'Aquilo se solidifica e fica depositado lá, o pulmão não consegue se
livrar desses resíduos', explicou Afonso.O médico lembrou que há várias
doenças provocadas pelo acúmulo de resíduos nos pulmões, não apenas em
consequência de incêncios.
Trauma Emocional
De maneira geral, a sensação de falta de ar tende a provocar pânico profundo nas pessoas, disse o pneumologista.
Ele explicou que muito depende da pessoa e do que ela vivenciou. Mas
contou que transtornos de ansiedade (incluindo-se, em casos extremos, a
Síndrome do Pânico) e depressão são comuns nesses casos.
— Se os seus amigos afundam sua cabeça na piscina, ficar sem respirar,
mesmo que por poucos segundos, já é suficiente para causar um pânico
grande.
— Entre os sobreviventes de um incêndio como esse, além da situação de
estresse e tumulto, quem não conseguiu respirar certamente viverá um
trauma.
Afonso citou casos de pessoas que se recuperaram bem mas começaram a
ter crises de falta de ar, sem qualquer justificativa pulmonar.
'Com certeza, esses pacientes devem procurar ajuda psicológica', recomendou o pneumologista.
BBC Brasil - Todos os direitos reservados - É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC
